quinta-feira, 12 de abril de 2018

Carta de aniversário para Coquinho

Das coisas que mais sinto falta quando vim morar em outra cidade está o beijo na testa que meu pai me dava todo dia antes de ir trabalhar. Tão normal quanto tomar café ou escovar os dentes era se despedir de mim e do meu irmão. Ele entrava no quarto devagarinho, pra não acordar a gente. Se tivesse frio, aproveitava pra ajeitar as cobertas. Saía, encostando a porta, impedindo que os primeiros raios de sol atrapalhassem nosso sono — que só podia durar mais tempo porque desde sempre era o pai que levantava antes pra trabalhar.

Meu pai tem três nomes. Gilberto Antônio Mateus — e um Bittencourt no final. Veio ao mundo em 12 de abril de 1964, doze dias após o início da ditadura militar no Brasil. Nasceu em um pedaço de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, onde o rio Una se encontra com o oceano Atlântico. Barra do Una, o nome do lugar. Filho caçula de nove irmãos, logo cedo foi apelidado pelo único nome capaz de descrever aquele rapazinho magricela de cabeça raspada: Coquinho. Cresceu sem mãe, mas foi acolhido pelas irmãs e cunhadas, que dele cuidavam enquanto meu vô trabalhava. Lembra com carinho das refeições em família, nas quais Seu Antônio, pai de meu pai, dividia o peixe entre os filhos. "A cabeça ficava com ele", comenta embalado por nostalgia. "A gente ficava com os pedaços melhores."

Não curtia muito estudar, mas seguiu firme até a oitava série. "Quem me ensinou matemática foi seu tio Walter. Era bem exigente", me disse um dia, referindo-se ao cunhado professor, que fizera questão de mostrar a ele a mágica dos números. De vez em quando, Coquinho largava o caderno debaixo de algum pé de carambola e se misturava aos colegas nas partidas de futebol. Disso ele sempre gostou. Inclusive, foi jogando bola como se ainda tivesse vinte anos, que recentemente, aos cinquenta e poucos, rompera o ligamento de um dos joelhos. Teve até que operar. "Agora, só amistoso", declara com determinação.

Se estudar não era seu forte, trabalhar, pelo contrário, sempre lhe parecera óbvio. Desde cedo ajudava os irmãos em serviço de obra, o que resultou nas várias casas que hoje ele faz questão de mostrar pra gente quando entramos de carro em Barra do Una. "Aquela ali eu construí com o Beto", diz apontando orgulhosamente para um dos vários casarões os quais ajudara a levantar, casarões esses que compõem a arquitetura do bairro que pros turistas é praia e pros moradores cidade.

De tanto bater laje, arriscou-se em um concurso público para pedreiro, na Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). "Vai, Mano", incentivou meu vô, que na época já era seu sogro, chamando-lhe por seu outro famoso apelido. "Concurso público é estabilidade financeira pro resto da vida." Não pôde se inscrever, entretanto, por conta algum empecilho qualquer que o fizera perder o prazo. Não demorou para o jornal noticiar o adiamento do concurso, também por causa de um motivo aleatório. Era como se a prova do processo seletivo dissesse a ele que se recusava a ser feita em sua ausência. Pois então lá foi meu pai, no dia remarcado, realizar sua inscrição. Pouco tempo depois, retornou para provar que sabia que a soma dos catetos ao quadrado dava na hipotenusa. O mais memorável, no entanto, não fora a fase teórica. Quando chegou o dia da prova prática, Mano vestiu sua bermuda de sarja bege e camisa de botão toda engomada. Nos pés, um par marrom de mocassins lustrados. Foi sem esforço algum que levantara um pequeno muro de tijolos. Diferente de todos os outros candidatos, finalizara o trabalho exatamente do mesmo jeito que havia iniciado: impecável, sem uma gota de cimento manchando a roupa. O resultado dessa saga foi ter garantido uma das duas únicas vagas dentre toda a Baixada Santista.

Foi com esse trabalho que ele comprou o meu primeiro brinquedo, um urso de pelúcia chamado Apaixonado. Foi quebrando asfalto para arrumar encanamento, vestido com aquela farda que parece carregar mais que seu próprio peso, que ele botou para dentro de nossa geladeira todos os danones que vinham com miniaturas durante minha infância. Foi aguentando desaforo de engenheiro que ele comprou o primeiro playstation do meu irmão, que de certa forma também virou seu. Foi fazendo plantão em natal e ano novo que ele fez nossas ceias terem comidas gostosas pra gente se empanturrar. Foi acordando cedo todo santo dia que ele tornou possível eu estar aqui hoje, a 700km de casa, prestes a me tornar bacharel em jornalismo numa universidade federal.

O trabalho, contudo, não é o único fator que o constitui. Óbvio que não. Apesar de quebrar a cabeça tentando configurar o Fifa com a ajuda do meu irmão por telefone, ele toca pandeiro como ninguém.  Fazer roda de samba e "ir pro mato", como ele e os irmãos se referem a acampar lá pros lados da cidade onde nasceram, estão entre seus maiores prazeres. Desenha animais e tem na ponta da língua o nome de todo bicho que você imaginar. Quando foi conhecer a UFSC comigo, bateu os olhos num pássaro e disse: tapicuru. Sabe, também, construir todo tipo de móvel e foi de sua criatividade que saiu minha primeira escrivaninha. Enquanto se recuperava da cirurgia no joelho, passava o tempo realizando alterações na decoração da casa. Um dia, quando não havia mais nada a fazer, pintou o ventilador de dourado.

Fica bravo facilmente. "Tadinho do bichinho", é a frase que emana quando chega do trabalho e percebe que ninguém passeou com o Bob. Perder os chinelos diariamente também faz parte de sua essência. Gosta de cerveja, mas desde que seja de Skol pra cima — e não pode ser litrão porque, segundo ele, "os caras botam água pra preencher a garrafa". Ir à academia de segunda à sexta é sua religião. Dentre os objetos que mais gosta estão o x-box e o carro, seu templo. Quando era jovem, capotou com seu antigo fusca verde, acidente que lhe rendera apenas uma cicatriz no ombro. No hospital, diante do médico que admirava sua sobrevivência, dizia: poxa, meu fusquinha já era.

Quando termina a partida no vídeo-game, janta, escova os dentes e senta no sofá para ver a novela. Nem espera pelos filmes da Tela Quente, porque segundo ele são todos repetidos. Vai dormir cedo, pra acordar disposto. E sempre acorda. Levanta com o radinho de pilha ao lado do travesseiro, sintonizado nas notícias da Jovem Pan. Depois do banho, sentado à mesa, faz a primeira oração do dia. Então, come o pão na chapa com manteiga, acompanhado do café com leite de sempre. Lembro do dia em que, antes de ir pro colégio, eu perguntei quanto tempo botava o seu leite pra esquentar no microondas. "Um minuto tá bom, pai?". "Não! É muito! Bota só 60 segundos", respondeu ele. Tio Walter teria ficado decepcionado.

Hoje não tem mais filha indo pro colégio e brigando pra usar o banheiro antes, nem filho pra lhe ajudar a mexer nas configurações do jogo pessoalmente. Estão longe, estudando e trabalhando, mas permanecem em seu coração, junto à sensação de alívio por ter sido ele próprio um dos responsáveis por isso. Ainda tem o Bob que, mesmo cardíaco, acorda todo dia com ele e, ao pé da mesa, acompanha seu café, ao som de Bom Dia Brasil. Então, meu pai termina de comer, pega a mochila e sai. O beijo na testa fica pra quando a gente se encontrar nas férias.

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