então, a gente cresce e percebe que aquele clichê do “o tempo é o melhor remédio” é tão real quanto as letras que brotam na tela em branco do meu computador neste momento. melhor: é real como a xícara de café que acabei de tomar, porque xícaras me parecem mais palpáveis que letras digitadas no google docs. bem, talvez nossa ideia de materialidade seja subjetiva e algo que para mim é concreto para você nem seja tanto. o que quero dizer com esse parágrafo que já dura mais do que eu supunha é que esse papo de o tempo curar dores é tão concreto quanto o prédio onde eu moro.
quando a nayara chegou até mim no recreio de uma quarta-feira distante e disse que contaria para todo mundo que eu gostava do guilherme da quinta-série B, eu pensei que fosse morrer. minhas pernas cambalearam. meu coração acelerou. acho que até minha pressão caiu. eu, aos onze anos, estava prestes a ser desmascarada — porque nessa idade você não quer que o menino de quem tu gosta descubra sua admiração. minha sorte foi que, naquele mesmo dia, descobri que a nayara gostava do felipe da quinta-série A. foi a primeira (e única) vez que chantegeei alguém.
agora, quinze anos depois, o medo de que o guilherme da quinta-série B descobrisse meu segredo não me parece duro. tenho empatia pelas dores e angústias passadas, mas sinto que, hoje, tal descoberta não seria um problema. se a nayara tivesse dado com a língua nos dentes, eu apenas teria um pedacinho de trauma amoroso para acrescentar a tantos outros vividos posteriormente. nada além disso. a dor se dissipa, o medo se esvai. o que antes era meu-deus-do-céu-não-vou-suportar hoje é ata.
o tempo cura.
lembro de quando pedi demissão pela primeira vez. eu trabalhava na farmácia do bairro, mas por um monte de motivos dos quais não me recordo, precisei abrir mão do serviço. ei, pera, acho que eu me lembro de um deles: eu tava morrendo de medo de virar adulta e trabalhar com coisas que não me faziam tão feliz. o ponto é que, no dia em que pedi demissão, eu tava apavorada. fui me tremelicando da cabeça aos pés até a sala do gerente, o paulo. depois de falar sem parar por cerca de cinco minutos, pedi desculpas por não poder continuar na equipe.
— poxa, que pena! — ele disse — a gente gosta tanto de você. será que não dá pra você mudar de função? em vez de ficar no caixa, a gente te coloca no balcão de atendimento...
— não, obrigada — eu respondi, sem graça — eu gosto de outras coisas…
— vamos pensar em outra função pra você — ele insistiu — do que você gosta?
— de escrever.
ele ficou me olhando, confuso, igual minha mãe quando eu dizia que queria bolo de milho pro café e só tinha ingrediente pra fazer de chocolate.
a demissão foi aceita. no dia seguinte, meu último na empresa, me despedi da carol e do marlon, meus amigos do caixa. foi uma choradeira. os velhinhos da fila preferencial se comoveram, mesmo sem entender o que ocorria.
senti saudade dos meus colegas por muitos e muitos meses. hoje, quase dez anos depois, não sei onde eles estão. quando passo na frente da farmácia, agora toda reformada, sinto nada além de uma leve nostalgia.
o tempo cura.
desde que a quarentena começou, entretanto, o tempo teve que se apressar para curar um montão de coisas. tem sido muita frustração para ele amenizar e muito frustrado para afagar. ele, o tempo, mudou. e, com isso, nossa percepção sobre ele também não é mais a mesma.
três meses atrás, eu chorei por duas horas ouvindo músicas tristes ao descobrir que apresentaria o meu tcc por videoconferência. no dia seguinte, me vi animada combinando com a minha orientadora os detalhes da apresentação online. o mesmo ocorreu quando descobri que a minha formatura seria através de telas. chorei, urrei, mandei todo mundo que vejo em barzinho lotado sem máscara pro raio que o parta. na mesma semana, outras preocupações me tomaram e pensar na cerimônia de colação de grau não fazia mais meu coração palpitar dolorido. pensei ‘tabom, fazer o quê?’
dois mil e vinte foi não apenas a retroescavadeira que passou por cima de nós, de nossa ingenuidade perante o controle que achamos ter da vida, de nossas agendas. dois mil e vinte foi um modificador de tempo. o que antes levaria meses para sarar, precisou aprender a se recompor em horas. em um dia, você sente um nó na garganta de tanta saudade que tá dos seus pais; no outro, tá rindo por videochamada com a família, como se tivesse tudo bem. como se tivesse se adaptado.
hoje chove. olho para a janela enquanto escrevo este último parágrafo e sinto a ausência das certezas me consumir. nem dá vontade de chorar por coisas que me afligem, ainda que eu precise. é como se elas tivessem se tornado pesadamente efêmeras. ou será que sempre foram?
crônica escrita para a disciplina de escrita criativa da faculdade