segunda-feira, 30 de novembro de 2020

o que dois mil e vinte fez com o tempo

então, a gente cresce e percebe que aquele clichê do “o tempo é o melhor remédio” é tão real quanto as letras que brotam na tela em branco do meu computador neste momento. melhor: é real como a xícara de café que acabei de tomar, porque xícaras me parecem mais palpáveis que letras digitadas no google docs. bem, talvez nossa ideia de materialidade seja subjetiva e algo que para mim é concreto para você nem seja tanto. o que quero dizer com esse parágrafo que já dura mais do que eu supunha é que esse papo de o tempo curar dores é tão concreto quanto o prédio onde eu moro.

quando a nayara chegou até mim no recreio de uma quarta-feira distante e disse que contaria para todo mundo que eu gostava do guilherme da quinta-série B, eu pensei que fosse morrer. minhas pernas cambalearam. meu coração acelerou. acho que até minha pressão caiu. eu, aos onze anos, estava prestes a ser desmascarada — porque nessa idade você não quer que o menino de quem tu gosta descubra sua admiração. minha sorte foi que, naquele mesmo dia, descobri que a nayara gostava do felipe da quinta-série A. foi a primeira (e única) vez que chantegeei alguém. 

agora, quinze anos depois, o medo de que o guilherme da quinta-série B descobrisse meu segredo não me parece duro. tenho empatia pelas dores e angústias passadas, mas sinto que, hoje, tal descoberta não seria um problema. se a nayara tivesse dado com a língua nos dentes, eu apenas teria um pedacinho de trauma amoroso para acrescentar a tantos outros vividos posteriormente. nada além disso. a dor se dissipa, o medo se esvai. o que antes era meu-deus-do-céu-não-vou-suportar hoje é ata

o tempo cura.

lembro de quando pedi demissão pela primeira vez. eu trabalhava na farmácia do bairro, mas por um monte de motivos dos quais não me recordo, precisei abrir mão do serviço. ei, pera, acho que eu me lembro de um deles: eu tava morrendo de medo de virar adulta e trabalhar com coisas que não me faziam tão feliz. o ponto é que, no dia em que pedi demissão, eu tava apavorada. fui me tremelicando da cabeça aos pés até a sala do gerente, o paulo. depois de falar sem parar por cerca de cinco minutos, pedi desculpas por não poder continuar na equipe.

— poxa, que pena! — ele disse — a gente gosta tanto de você. será que não dá pra você mudar de função? em vez de ficar no caixa, a gente te coloca no balcão de atendimento...

— não, obrigada — eu respondi, sem graça — eu gosto de outras coisas… 

— vamos pensar em outra função pra você — ele insistiu  — do que você gosta? 

— de escrever.

ele ficou me olhando, confuso, igual minha mãe quando eu dizia que queria bolo de milho pro café e só tinha ingrediente pra fazer de chocolate. 

a demissão foi aceita. no dia seguinte, meu último na empresa, me despedi da carol e do marlon, meus amigos do caixa. foi uma choradeira. os velhinhos da fila preferencial se comoveram, mesmo sem entender o que ocorria. 

senti saudade dos meus colegas por muitos e muitos meses. hoje, quase dez anos depois, não sei onde eles estão. quando passo na frente da farmácia, agora toda reformada, sinto nada além de uma leve nostalgia. 

o tempo cura.

desde que a quarentena começou, entretanto,  o tempo teve que se apressar para curar um montão de coisas. tem sido muita frustração para ele amenizar e muito frustrado para afagar. ele, o tempo, mudou. e, com isso, nossa percepção sobre ele também não é mais a mesma.  

três meses atrás, eu chorei por duas horas ouvindo músicas tristes ao descobrir que apresentaria o meu tcc por videoconferência. no dia seguinte, me vi animada combinando com a minha orientadora os detalhes da apresentação online. o mesmo ocorreu quando descobri que a minha formatura seria através de telas. chorei, urrei, mandei todo mundo que vejo em barzinho lotado sem máscara pro raio que o parta. na mesma semana, outras preocupações me tomaram e pensar na cerimônia de colação de grau não fazia mais meu coração palpitar dolorido. pensei ‘tabom, fazer o quê?’

dois mil e vinte foi não apenas a retroescavadeira que passou por cima de nós, de nossa ingenuidade perante o controle que achamos ter da vida, de nossas agendas. dois mil e vinte foi um modificador de tempo. o que antes levaria meses para sarar, precisou aprender a se recompor em horas. em um dia, você sente um nó na garganta de tanta saudade que tá dos seus pais; no outro, tá rindo por videochamada com a família, como se tivesse tudo bem. como se tivesse se adaptado.

hoje chove. olho para a janela enquanto escrevo este último parágrafo e sinto a ausência das certezas me consumir. nem dá vontade de chorar por coisas que me afligem, ainda que eu precise. é como se elas tivessem se tornado pesadamente efêmeras. ou será que sempre foram? 

crônica escrita para a disciplina de escrita criativa da faculdade


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

é que eu sou vegana

"próxima estação: santa cecília."
levanto e me apoio perto da porta, a bolsa à tiracolo. com o desacelerar do metrô, faço arte de equilibrista para não derrubar o pote de plástico que tenho em mãos. desde que comecei a trabalhar na nova agência, há um mês e pouquinho, volto para casa com um embrulho de bolo diferente a cada sexta-feira. é a dona geralda, a senhora da limpeza, que leva pra gente. dessa vez, veio até coxinha de frango, porque o neto dela fez aniversário ontem e ela fez questão de levar salgadinho pra gente. 
— cê aquece no forno que fica uma beleza, viu? — ela avisou, esticando os braços com vontade inigualável na minha direção, enquanto eu desligava o computador. 
fico feliz pela gentileza, mas sinto chateação por não poder de fato apreciar o carinho de dona geralda. “é que eu sou vegana”, eu expliquei, negando o bolo que ela me entregou na minha primeira semana no escritório. lembro bem do olhar confuso e um tanto triste que veio dela pra mim. “ve o quê?”, perguntou. não sei o que me deu, só sei que não consegui levar aquilo adiante. “ah, nada não, dona geralda!” e segurando a fatia de bolo de cenoura embalada em papel alumínio, continuei: “deve estar muito gostoso! obrigada.”
costumo me preocupar demais com o que pessoas acham de mim — o que é totalmente compreensível, especialmente quando falo de senhoras gentis que te abraçam e te dão bolo. naquele mesmo dia, enquanto o elevador me deixava no andar do meu apartamento e eu matutava sobre o destino daquele embrulho, parei em frente à porta da laura. era uma vizinha que havia se mudado para lá dias antes. toquei a campainha, sem raciocinar direito. ouvi barulho de chave.
— oi! — ela disse, um pouco surpresa por me ver ali.
estava de pijama e segurava uma caneca com alguma bebida dentro. chá? não sei, porque naquele momento meus olhos pararam nos dela. eu ainda não tinha prestado atenção em como ela era bonita. 
— olha, eu sei que é estranho —  eu comecei —, afinal eu nunca conversei com você, mas eu ganhei um pedaço de bolo de uma senhora no trabalho hoje e eu não como porque sou vegana — expliquei, atropelando as palavras. —  se não fosse isso eu realmente comeria porque, tipo, tá com uma cara boa. é de cenoura. o pessoal do trabalho diz que a dona geralda cozinha bem demais.
naquele pedacinho de instante da minha existência, tudo o que eu quis foi sair correndo. ou começar tudo de novo. quem chega assim no apartamento de uma vizinha nova oferecendo comida que ganhou e que não quer, tagarelando sem parar? 
— comida de graça? — ela respondeu, sorrindo. —  quem nessa cidade nega comida de graça? 
com um leve delay, dei risada. 
— você veio da onde? — perguntei, esticando o embrulho. ela segurou.
— floripa. tô fazendo mestrado aqui.
— uau. espero com esse pedaço de bolo ter reforçado aquele clichê do “existe amor em sp” —  e rapidamente, como se tentasse corrigir —  porque comida é amor, né? comida de graça…
— reforçou sim. obrigada! — ela concordou, rindo como se me acalmasse.
na semana seguinte, apareci na porta de laura com outro pedaço de bolo, dessa vez de chocolate. o sorriso que recebi de volta foi o mesmo. ela me explicou o que estudava e eu contei pra ela com o que eu trabalhava. 
sete dias depois, levei bolo de laranja e conversamos sobre a segunda temporada sex education, que tinha acabado de sair na netflix.
na outra semana, levei bolo de milho e ela me emprestou o amor nos tempos do cólera, seu livro favorito. 
uma semana depois, o bolo foi de fubá e a conversa foi sobre como nossos problemas são pequenos quando tomamos outros planetas como referencial. nesse dia, ela me convidou pra entrar passamos quase duas horas discutindo sobre a angústia de se perceber pequenas diante da estrela v.k.majoris que, como confirmamos no google pelo meu celular, é um bilhão de vezes maior que o sol.
fora sextas no início da noite, não nos encontrávamos. não pedimos o número uma da outra. éramos, sim, jovens adultas com vidas atribuladas, mas no fundo eu sentia que havia um pacto entre a gente. era como se os finais de sexta-feira tivessem sido decretados, oficialmente, o único dia para a gente se encontrar. quando eu me dei conta, aquele havia se tornado o momento da semana mais aguardado por mim. e algo na forma como laura me olhava toda vez ao abrir a porta me fazia acreditar que também era o mais aguardado por ela. 
depois de sair da estação e caminhar até o prédio pensando em como dizer gentilmente a ela que eu não havia gostado tanto de gabriel garcía márquez, ouço um rapaz informar ao porteiro que vai ao “apartamento 601, da laura”. finjo que procuro alguma coisa na bolsa, com cuidado para não derrubar a embalagem de plástico no chão. fico confusa, não sei como agir. faço de conta que não ouvi o que ele disse ao porteiro e simplesmente o acompanho até o meu rotineiro destino de sextas-feiras? ou puxo assunto e falo que é pra lá que eu tô indo também? a segunda opção parece indelicada. vai que ele seja algum tipo de namorado ou, sei lá. de qualquer forma, o tempo que perco pensando não me permite decidir o que fazer. quando dou por mim, estou esperando o elevador junto ao visitante. 
— ei… — eu digo, em um tom quase inaudível.  — você tá indo na laura?
ele me olha, um pouco confuso.
— é que eu ouvi você falando com o porteiro...  — e, falando mais rápido que o de costume, emendo     — enfim, eu moro no mesmo andar que ela e ia passar na casa dela pra deixar isso lá  — mostrei a embalagem  — mas como você tá indo, pensei que talvez pudesse fazer isso por mim, não sei, não quero atrapalhar…
— espera, você é a menina do bolo?  — ele me interrompe.
faço uma cara estranha de quem entendeu, mas não entendeu.
— acredito que eu seja.  — e dou risada, ainda confusa.
— fernanda, né?
— sim.
— eu sou o bruno  — ele se apresenta, abrindo a porta do elevador para eu passar.  — irmão da laura. eu costumo vir aos sábados pra almoçar com ela, mas amanhã não vou poder, então resolvi vir hoje, sem avisar. — ele aponta para a sacola de papel que carrega nos braços, onde parece ter comida.
a porta do elevador fecha. bruno aperta o número seis. 
— posso perguntar uma coisa?  — falo, sem aguentar de curiosidade. — por que você me conhece como “a menina do bolo”?
ele hesita.
— cara, na real eu não devia ter falado isso. vai soar estranho — ele mede as palavras —, mas toda vez que venho almoçar com a laura, ela me dá o bolo que você deu pra ela. 
e, como se precisasse rapidamente complementar uma informação, acrescenta: 
— mas não entenda mal!  — ele explica, sorrindo  — é que ela é vegana.

conto escrito para a disciplina de escrita criativa da faculdade

domingo, 1 de novembro de 2020

a inconstância das coisas tem me deixado cansada

tava aqui lendo o blog da clara, o liternecer, e fiz um comentário bonito. deu vontade de trazer um pedaço dele pra cá, levemente adaptado:

eu também não gosto da sensação de ficar assistindo as coisas passarem por mim, como espectadora da minha própria existência (poéticahhh), mas tem dias que não dá pra me conectar comigo mesma. desde ontem, eu ando meio borocoxô, desanimada (...) a sensação que tenho é que até dia 7/12, quando apresentarei meu tcc, algumas coisas da minha vida ficarão meio suspensas. inclusive ler. tô lendo 'a elegância do ouriço' há dois meses, um pouquinho de cada vez quando dá vontade, e quase nunca dá. parece que eu mesma me afasto de coisas que me aproximariam de mim. que doido, né?

quando me sinto assim, desconectada de quem sou, gosto de ficar quietinha. foi um pouco disso que a clara falou no texto dela, inclusive. no meu caso, eu sinto urgência de desativar meu instagram, pedir à pessoa que mora comigo um pouco de espaço, escrever no meu diário - ou no blog, como agora -, enfim, fazer coisas que eu sinto que me aproximam de mim, ainda que devagar. se eu não paro, minha cabeça permanece chiando, igual panela de pressão. tenho medo de explodir.

a efemeridade das sensações tem me assustado. eu encaro o google docs aberto e olho pro livro que tô escrevendo para me formar jornalista. me vem um sufoco de dentro, como se  me apertasse toda. segundos depois eu respiro, olho pras árvores lá fora, e penso que não é de todo ruim. de repente, parece simples, a ponto de me dar vontade de apresentar meu trabalho naquele exato instante, tamanha confiança. tem sido assim há meses, em outros pontos da vida. olho de um jeito, fico doida, olho de outro, passa. a inconstância das coisas tem me deixado cansada.

o que resta é acolher, respeitar. uma hora passa.

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