quarta-feira, 11 de novembro de 2020

é que eu sou vegana

"próxima estação: santa cecília."
levanto e me apoio perto da porta, a bolsa à tiracolo. com o desacelerar do metrô, faço arte de equilibrista para não derrubar o pote de plástico que tenho em mãos. desde que comecei a trabalhar na nova agência, há um mês e pouquinho, volto para casa com um embrulho de bolo diferente a cada sexta-feira. é a dona geralda, a senhora da limpeza, que leva pra gente. dessa vez, veio até coxinha de frango, porque o neto dela fez aniversário ontem e ela fez questão de levar salgadinho pra gente. 
— cê aquece no forno que fica uma beleza, viu? — ela avisou, esticando os braços com vontade inigualável na minha direção, enquanto eu desligava o computador. 
fico feliz pela gentileza, mas sinto chateação por não poder de fato apreciar o carinho de dona geralda. “é que eu sou vegana”, eu expliquei, negando o bolo que ela me entregou na minha primeira semana no escritório. lembro bem do olhar confuso e um tanto triste que veio dela pra mim. “ve o quê?”, perguntou. não sei o que me deu, só sei que não consegui levar aquilo adiante. “ah, nada não, dona geralda!” e segurando a fatia de bolo de cenoura embalada em papel alumínio, continuei: “deve estar muito gostoso! obrigada.”
costumo me preocupar demais com o que pessoas acham de mim — o que é totalmente compreensível, especialmente quando falo de senhoras gentis que te abraçam e te dão bolo. naquele mesmo dia, enquanto o elevador me deixava no andar do meu apartamento e eu matutava sobre o destino daquele embrulho, parei em frente à porta da laura. era uma vizinha que havia se mudado para lá dias antes. toquei a campainha, sem raciocinar direito. ouvi barulho de chave.
— oi! — ela disse, um pouco surpresa por me ver ali.
estava de pijama e segurava uma caneca com alguma bebida dentro. chá? não sei, porque naquele momento meus olhos pararam nos dela. eu ainda não tinha prestado atenção em como ela era bonita. 
— olha, eu sei que é estranho —  eu comecei —, afinal eu nunca conversei com você, mas eu ganhei um pedaço de bolo de uma senhora no trabalho hoje e eu não como porque sou vegana — expliquei, atropelando as palavras. —  se não fosse isso eu realmente comeria porque, tipo, tá com uma cara boa. é de cenoura. o pessoal do trabalho diz que a dona geralda cozinha bem demais.
naquele pedacinho de instante da minha existência, tudo o que eu quis foi sair correndo. ou começar tudo de novo. quem chega assim no apartamento de uma vizinha nova oferecendo comida que ganhou e que não quer, tagarelando sem parar? 
— comida de graça? — ela respondeu, sorrindo. —  quem nessa cidade nega comida de graça? 
com um leve delay, dei risada. 
— você veio da onde? — perguntei, esticando o embrulho. ela segurou.
— floripa. tô fazendo mestrado aqui.
— uau. espero com esse pedaço de bolo ter reforçado aquele clichê do “existe amor em sp” —  e rapidamente, como se tentasse corrigir —  porque comida é amor, né? comida de graça…
— reforçou sim. obrigada! — ela concordou, rindo como se me acalmasse.
na semana seguinte, apareci na porta de laura com outro pedaço de bolo, dessa vez de chocolate. o sorriso que recebi de volta foi o mesmo. ela me explicou o que estudava e eu contei pra ela com o que eu trabalhava. 
sete dias depois, levei bolo de laranja e conversamos sobre a segunda temporada sex education, que tinha acabado de sair na netflix.
na outra semana, levei bolo de milho e ela me emprestou o amor nos tempos do cólera, seu livro favorito. 
uma semana depois, o bolo foi de fubá e a conversa foi sobre como nossos problemas são pequenos quando tomamos outros planetas como referencial. nesse dia, ela me convidou pra entrar passamos quase duas horas discutindo sobre a angústia de se perceber pequenas diante da estrela v.k.majoris que, como confirmamos no google pelo meu celular, é um bilhão de vezes maior que o sol.
fora sextas no início da noite, não nos encontrávamos. não pedimos o número uma da outra. éramos, sim, jovens adultas com vidas atribuladas, mas no fundo eu sentia que havia um pacto entre a gente. era como se os finais de sexta-feira tivessem sido decretados, oficialmente, o único dia para a gente se encontrar. quando eu me dei conta, aquele havia se tornado o momento da semana mais aguardado por mim. e algo na forma como laura me olhava toda vez ao abrir a porta me fazia acreditar que também era o mais aguardado por ela. 
depois de sair da estação e caminhar até o prédio pensando em como dizer gentilmente a ela que eu não havia gostado tanto de gabriel garcía márquez, ouço um rapaz informar ao porteiro que vai ao “apartamento 601, da laura”. finjo que procuro alguma coisa na bolsa, com cuidado para não derrubar a embalagem de plástico no chão. fico confusa, não sei como agir. faço de conta que não ouvi o que ele disse ao porteiro e simplesmente o acompanho até o meu rotineiro destino de sextas-feiras? ou puxo assunto e falo que é pra lá que eu tô indo também? a segunda opção parece indelicada. vai que ele seja algum tipo de namorado ou, sei lá. de qualquer forma, o tempo que perco pensando não me permite decidir o que fazer. quando dou por mim, estou esperando o elevador junto ao visitante. 
— ei… — eu digo, em um tom quase inaudível.  — você tá indo na laura?
ele me olha, um pouco confuso.
— é que eu ouvi você falando com o porteiro...  — e, falando mais rápido que o de costume, emendo     — enfim, eu moro no mesmo andar que ela e ia passar na casa dela pra deixar isso lá  — mostrei a embalagem  — mas como você tá indo, pensei que talvez pudesse fazer isso por mim, não sei, não quero atrapalhar…
— espera, você é a menina do bolo?  — ele me interrompe.
faço uma cara estranha de quem entendeu, mas não entendeu.
— acredito que eu seja.  — e dou risada, ainda confusa.
— fernanda, né?
— sim.
— eu sou o bruno  — ele se apresenta, abrindo a porta do elevador para eu passar.  — irmão da laura. eu costumo vir aos sábados pra almoçar com ela, mas amanhã não vou poder, então resolvi vir hoje, sem avisar. — ele aponta para a sacola de papel que carrega nos braços, onde parece ter comida.
a porta do elevador fecha. bruno aperta o número seis. 
— posso perguntar uma coisa?  — falo, sem aguentar de curiosidade. — por que você me conhece como “a menina do bolo”?
ele hesita.
— cara, na real eu não devia ter falado isso. vai soar estranho — ele mede as palavras —, mas toda vez que venho almoçar com a laura, ela me dá o bolo que você deu pra ela. 
e, como se precisasse rapidamente complementar uma informação, acrescenta: 
— mas não entenda mal!  — ele explica, sorrindo  — é que ela é vegana.

conto escrito para a disciplina de escrita criativa da faculdade

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