teve dia que, ao preparar o jantar, me doía o peito de repente. então, eu desligava o fogo, a comida cozida pela metade, e me recolhia no sofá, onde me cobria com uma manta macia. não demorava e as lágrimas vinham, pesadas. no whatsapp, me perguntavam se estava tudo bem e me dava ainda mais vontade de chorar. quando dei por mim, havia passado meses de recolhimento no mesmo canto do sofá, a televisão na globo transmitindo coisa qualquer que me fizesse menos sozinha. ri de novelas ruins, assisti a um bbb sem graça, vi a guerra pelo jornal nacional.
notaram, numa terça-feira ao fim do dia, que eu precisava de companhia. mais que isso, ajuda. me apropriei da soberania que ainda restava em mim, abri a conversa no celular e confirmei. quando terminou o expediente, o henrique, meu namorado, desviou o caminho de casa e veio até mim. pediu lámen, trouxe dois livros e um abraço apertado. um dos exemplares era uma coletânea de crônicas do machado de assis chamada bons dias. fingi que acreditava no que o título dizia e botei fé no meu fingimento. mesmo sem vislumbrar luz no fim daquilo que me consumia, me permiti ser acolhida. aceitei ajuda. jantamos, assistimos crescidinhos, da netflix. me senti em casa, na minha própria casa. reparei que além do henrique, outras pessoas queridas estavam por perto. li suas mensagens, aceitei afagos, mesmo a distância. eu não estava sozinha e isso era muito.
olhando do presente, enquanto tomo café depois do almoço, percebo que via nesses meses tortuosos uma pausa na existência. parece que não vivi, sabe? e é doido, porque se tem uma coisa que fiz, no meio de toda a desesperança possível que me abateu desde janeiro, foi viver. tirei de mim uma força impetuosa pra acordar, fazer meu pão na chapa, ligar o computador para trabalhar. até mesmo entender que haveria dias de produção quase nula me exigiu coragem, assombrada pelo medo de me descobrirem deprimida e me demitirem por improdutividade. hoje, de fora, acho insana essa ideia. fiz muito com pouco.
amei dois filmes: les nuits de la pleine lune e ich bin dein mensch. li tudo é rio, da carla madeira, e grifei todinho. assisti aos dois últimos filmes da trilogia antes do amanhecer e achei chatos (podia ter ficado só no primeiro, impecável). conheci pelo menos dez cafeterias em são paulo. de longe, o texto ladainha da sobrevivência, da yasmin santos - publicado na serrote -, foi um dos mais bonitos dos últimos tempos. me formei jornalista na ufsc. recebi da editora a primeira versão revisada do meu livro. tive a experiência catártica de ter participado de uma oficina de microcontos e outra de crônicas ministradas pela tayná saez, do sutilezas atômicas. aprendi a fazer banoffee. fiz aulas de yoga da pri leite e até que fui bastante à academia. passeei pela paulista. descobri que a mistura de doce de leite + coco + macadâmia crocante, do bacio di latte, é divina. quando reparei, tava voltando a ver beleza na sombra que a janela faz na parede do meu quarto pela manhã.
me surpreende pensar que, enquanto estive submersa, havia vida. perceber o próprio movimento mesmo na pausa me ajuda a entender que todos esses meses não foram tempo perdido. longe de mim romantizar a dor, mas mesmo nela há o que se notar. peguei a angústia não como algo a ser aniquilado, mas compreendido. confesso que ainda falta muito a entender sobre ela, mas estou contente por tê-la acolhido em meus braços e entendido que o que eu via como hiato era, na verdade, parte do todo.
estou e estive viva. nada parou. as ondas continuam a me cobrir, mas eu, que sou ligeira, mergulho de um jeito que me permite voltar para pegar fôlego. ao mesmo tempo, não sou ingênua e sei que em outro tempo pode ser que eu me afaste novamente da superfície. só que, diferente de antes, tentarei lembrar que eu não vou estar lá em cima, longe de mim: estarei comigo, mesmo no fundo, reaprendendo a nadar mais uma vez.
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