quarta-feira, 10 de maio de 2023

poesia ainda que discreta

por quase três décadas, eu fingi que a depressão não era coisa minha. vivi como se ela não estivesse ali. dava medo de legitimar sua existência e me perder de mim mesma. era como se, ao me decretar deprimida, eu apertasse um botão que me empurraria em direção a uma imensidão dolorosa, eterna, assustadora. tipo fundo do mar, universo.

estar deprimida era, para mim, abandonar a poesia da vida. 

teve um dia que a angústia me sufocou feito blusa apertada, dessas que de gola estreita, difícil de passar no pescoço. resolvi ir até a janela dar uma choradinha depois do trabalho. lembro que olhei para o prédio da frente e me deparei com outra janela, do lado oposto da avenida. era um cômodo de luz amarelada e não dava pra ver nada além da iluminação, mas me pus a imaginar. criei na minha mente a pessoa que morava ali, a disposição dos móveis, a cor do tapete. pensei se aquela pessoa, ruth, nair, laura, talvez maria, por acaso também estaria triste, se havia pedido algo no ifood, se, assim como eu, ouvia sp tv segunda edição pela televisão da sala. foram cinco minutos, não mais que isso, observando aquele quadrado. não me tirou a angústia, mas aliviou a ponto de eu parar de chorar e ferver água para um chá. 

sou assim desde pequena. gosto de reparar nas sutilezas, observar o que me cerca. como eliane brum uma vez escreveu, o ordinário da vida é o extraordinário. talvez por razão de sobrevivência ao vazio da vida, que sempre me assustou, aprendi logo cedo a me conectar com o que parecia pequeno. sabia, desde a época em que eu ia sozinha ao cinearte-posto-4 ver filmes desconhecidos por R$1,50, que só a vida não bastava. (anos mais tarde, descobri que ferreira gullar havia dito o mesmo.)

ainda sim, de vez em quando a poesia me escapava, igual adélia prado conta no poema paixão: às vezes, ela olhava pedra e via pedra mesmo. por muito tempo pensei que a depressão fosse fazer o mesmo comigo, porque estar deprimida parecia ter nada a ver com poesia. e nem é sobre ser bom ou ruim, porque obviamente é ruim. na poesia não cabem maniqueísmos. ainda sim.

em seu poema, adélia prado anuncia que não fará poesia sobre nada. talvez estivesse desiludida como eu fico quando me vejo em crises. mas ao falar que não escreveria, adélia escreve. não lhes farei um verso. e lhes faz. hoje, enquanto eu passava xampu e torcia pra fazer espuma, reparei que meu olhar poético, apesar de turvo, permaneceu comigo mesmo nos dias mais dolorosos, aqueles nos quais meu corpo ameaçava virar poeira e eu temia perder o controle que imaginava ter sobre mim, passando a vagar como algo sem vida. 

enxaguando o cabelo, percebi então que, mesmo ao ver pedra, jamais me desconectei das bonitezas. a poesia nunca foi embora.
© Meus Cafés
template feito por Maira Gall
✽ modificado por Manie ✽